O Ministério PĂșblico do Trabalho (MPT) entrou com ação civil pĂșblica pedindo indenização de R$1,3 milhão para o trabalhador resgatado de condições anĂĄlogas à escravidão em Planura. A vĂtima foi mantida em cativeiro durante nove anos por trĂȘs homens: um professor, um administrador e um contador, jĂĄ presos pelas autoridades.
Segundo o processo divulgado em 28 de abril, o MPT solicita R$300 mil referentes a verbas salariais e rescisórias, além da formalização do contrato de trabalho na carteira profissional do trabalhador para o perĂodo entre 2016 e 2025. Adicionalmente, a ação requer R$1 milhão por danos morais individuais à vĂtima e R$2 milhões por danos morais coletivos.
O Auditor Fiscal do Trabalho, Humberto Monteiro Camasmie, explicou o significado dos valores solicitados: "A indenização por dano moral individual é uma reparação revertida diretamente à vĂtima, e a indenização por dano moral coletivo é revertida para a sociedade, sendo normalmente um recurso usado para a realização de obras e melhorias no local onde o crime ocorreu."
Conforme a advogada do nordestino, a vĂtima tinha seus documentos retidos pelos patrões, era proibida de possuir celular ou acessar redes sociais, e tinha sua rotina completamente controlada pelos trĂȘs acusados.
Nayara Beatriz Borges Ferreira, coordenadora da ClĂnica de Combate ao Trabalho Escravo da Universidade Presidente Antônio Carlos (Unipac), que acompanha o caso desde o inĂcio, relatou detalhes do resgate: "Eu participei de toda a ação, desde a chegada da PolĂcia Federal até a casa dos envolvidos. Quando entramos, a vĂtima não entendeu o que estava acontecendo, ele estava muito assustado e relutante em contar tudo o que havia acontecido. Até hoje ele se resguarda a dizer sim ou não para as perguntas que fazemos."
A advogada também informou que a primeira solicitação do trabalhador após ser libertado foi fazer contato com sua famĂlia. "Até onde apuramos ele tinha o contato bastante regrado com a famĂlia e só podia fazer as ligações com autorização dos patrões. Ele não sabia nem mesmo o nĂșmero dos familiares e, por isso, a polĂcia teve que identificar a famĂlia e encontrar o contato."
Por razões de segurança e procedimentos judiciais, a localização atual da vĂtima não pode ser divulgada. Sabe-se apenas que ele deixou Planura, passou por Uberaba e posteriormente foi transferido para um local seguro.
SEGUNDA VĂTIMA
O MPT também informou que a mulher trans de 29 anos, segunda vĂtima no caso, poderĂĄ ser indenizada. A documentação para caracterização da situação dela ainda estĂĄ em anĂĄlise pelas autoridades.
Em duas transmissões ao vivo no Facebook, a mulher identificada como Luciana Pereira, compartilhou sua experiĂȘncia. Na segunda live de cerca de 22 minutos, realizada em 30 de abril, ela afirmou estar no Rio Grande do Sul hĂĄ aproximadamente um mĂȘs e que não faria mais pronunciamentos pĂșblicos sobre o caso.
"Trabalhava quase 12 horas por dia, além de estudar. Consegui meu diploma e estava prestes a entrar na faculdade, mas não pude porque tive um AVC", relatou.
Segundo Luciana, os trĂȘs homens formavam um relacionamento a trĂȘs: "Eram trĂȘs homens: dois casados, e o outro seria sócio, mas era também parceiro dos dois — formavam um trisal."
Ela também denunciou irregularidades trabalhistas: "Meus benefĂcios foram negados pelo INSS. Meu próprio patrão — que era também o contador — não recolhia meus direitos."
Entre os relatos mais graves, Luciana mencionou ter presenciado uma tentativa de suicĂdio do outro trabalhador: "Cheguei a ver meu colega tentar se enforcar, espumando sangue pelos olhos. E isso ficou impune. Tiraram meu celular para eu não chamar a polĂcia nem ambulância."
A mulher também apontou possĂveis esquemas envolvendo instituições de ensino: "HĂĄ muitas outras coisas envolvidas, inclusive corrupção em projetos com universidades. Gente que comprava diplomas, sem estudar."
ENTREVISTA AO G1
Ao g1, a uruguaia relatou que quando ficou doente com AVC, provocado por estresse, "acharam que eu estava fingindo". Luciana lembra ainda que presenciou diversas humilhações e chantagens ao nordestino de 32 anos, que foi forçado a tatuar as iniciais dos agressores como sĂmbolo de posse.
"Lembro que era uma sexta-feira quando me pediram para tirar todos os móveis da cozinha e limpar, porque iriam trocĂĄ-los. Como eu tinha medo de que as violĂȘncias se virassem contra mim, eu limpava tudo e foi nessa situação que eu tive o AVC. Quando me encontraram caĂda na cozinha acharam que era mentira e chegaram a furar toda a minha perna com uma agulha para terem certeza de que eu não estava sentindo nada", contou.
Luciana afirma que hoje tem metade do corpo paralisado em decorrĂȘncia do AVC. Ela relata que após o acidente vascular, os patrões a levaram até Uberaba e a abandonaram em um hospital da cidade, obrigando-a a dizer que eram apenas amigos e que ela não tinha nenhum vĂnculo empregatĂcio com eles.
"Depois eu não voltei a vĂȘ-los. Eles passaram a me mandar uma quantia em dinheiro para eu comer e pagar o aluguel, mas que não passava de R$ 600. Eu passei fome, não tinha amparo e estava em uma cidade que eu não conhecia nada. Eu tomei coragem e contei para alguns amigos tudo o que estava acontecendo e eles conseguiram me dar certa ajuda."
Ainda durante o processo de recuperação, o medo fez a situação de Luciana piorar. Orientada pela equipe médica a permanecer em Uberaba, ela contrariou o pedido e viajou de avião para se afastar.
"Eu ainda tenho parte do corpo paralisado, porque tive um segundo AVC em uma viagem que fiz às pressas de avião. O médico recomendou que continuasse em Uberaba, mas eu não podia, então aceitei o risco e fui embora. Esse segundo AVC foi provocado pela viagem de avião que eu não poderia ter feito devido ao meu estado de saĂșde", explicou.
Ela também denunciou irregularidades trabalhistas: "Meus benefĂcios foram negados pelo INSS. Meu próprio patrão — que era também o contador — não recolhia meus direitos."
Entre os relatos mais graves, Luciana mencionou ter presenciado uma tentativa de suicĂdio do outro trabalhador: "Cheguei a ver meu colega tentar se enforcar, espumando sangue pelos olhos. E isso ficou impune. Tiraram meu celular para eu não chamar a polĂcia nem ambulância."
Segundo a uruguaia, o homem era totalmente excluĂdo do convĂvio da casa. "Ele comia em vasilhas de plĂĄstico colocadas fora da residĂȘncia e não podia entrar na casa dos patrões, sendo submetido a trabalhos ĂĄrduos até a exaustão", afirmou.
Em uma das ocasiões, Luciana diz que o homem teve os dois braços quebrados pelos patrões e, como um deles trabalhava como contador, conseguiu fazer com que a vĂtima recebesse uma indenização de R$ 10 mil usada pelos acusados para uma viagem ao Caribe.
"Ele sofreu até o ponto de tentar tirar a própria vida. Na ocasião eles o haviam deixado limpando sozinho as duas escolas das quais são donos. Aparentemente foi agredido durante o dia e só retornou tempos depois bastante ferido. Nesse dia, ele foi direto para os fundos e tentou tirar a própria vida. Só fomos descobrir quando os patrões berraram e ele não respondeu. Ao chegarmos, ele jĂĄ estava sem respirar. Além disso, disseram que não o levariam para o hospital e que dariam um jeito ali mesmo. Foi graças a Deus que ele sobreviveu", relembrou Luciana.
A reportagem permanece aberta ao contraditório, caso a defesa dos acusados queira se manifestar.